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SADE E O LIMITE

274 anos de Transgressões

 

 

    O limite, segundo o verbete de Diderot na sua Enciclopédia, é uma linha tênue para além da qual não é permitido passar. Nos seus setenta e quatro anos de vida, Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814) parece ter perscrutado esse fio em toda a sua extensão. O marquês afronta, esgarça e desafia limites, seja nas alcovas ou nas prisões, não importa se na Monarquia, durante a Revolução, na República ou no Império de Napoleão. Ainda assim, a linha se expande por conta da censura política e do moralismo social, para contrair-se somente à força da libertinagem,  insinuada na experiência e exacerbada na escrita. Se a realidade confina o libertino, a ficção sadiana enclausura o pudico, liberando o debochado à busca desenfreada de sensações. Mas a tensão que se instala no ato de impor e transgredir limites não se restringe à fronteira entre vítimas e carrascos; ela é capaz de se alastrar, infiltrando-se nas relações entre os celerados, que passam a testar, uns nos outros, suas capacidades transgressivas.

 

    Por um lado, tanto o discurso filosófico quanto a prática do deboche podem ser limitados por um resto de preconceito, pela falta de sangue-frio ou mesmo, num extremo oposto, por um excesso de circunspecção e de racionalismo. É infinitamente sutil a divisa que separa o crime dito puro do crime de entusiasmo, a imaginação das ilusões, ou ainda a sensibilidade física dos afetos sentimentais. Por outro lado, se o motor do desejo é a violação de todas as barreiras, deve-se admitir o obstáculo para poder ultrapassá-lo. Como nota o personagem Bressac, de A nova Justine,“um ser que exclui todo limite não é suscetível de adições”. A filosofia libertina desconstrói assim as regras sociais e políticas, mas a superação pelo excesso deve erigir novos diques a fim de tornar possível e renovável a prática da transgressão. 

 

    A ideia de limite na obra e na vida de Sade é, portanto, ambígua e ambivalente. “Estendem-se ou estreitam-se os limites”, dizia o enciclopedista. Com efeito, as balizas entre filosofia e literatura se dissolvem, assim como as que separam a ciência da ficção, a lógica materialista das extrapolações romanescas, as experiências do autor das façanhas de seus personagens. Entretanto, o trabalho de interpretação e análise implica uma extensão dos limites: é preciso cindir aspectos divergentes para melhor examiná-los, sob a condição, é claro, de reuni-los em seguida. Pois os limites nunca são definitivos, ainda mais quando se trata dos escritos do marquês. Os elementos que se decompõem num primeiro tempo devem se agregar sob outras formas num outro momento. Nos duzentos anos que se seguem à morte de Donatien Alphonse François, as teorias e práticas de seus heróis mudam evidentemente de forma por meio das obras que influenciam. Artistas de todas as sortes transmutam essa “filosofia lúbrica”, ultrapassando ou inventando novos limites. Sua essência, porém, mantém-se viva e estende-se por toda parte, do fim do século dezoito até os dias de hoje. 

 

    No intuito de comemorar o bicentenário da morte de Sade, a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) reúnem vários estudiosos da obra do marquês e do século XVIII, inserindo o Brasil num contexto de celebrações que vem ocorrendo em diversos países ao longo deste ano. O Colóquio Internacional Sade e o Limite: 274 anos de transgressões pretende homenagear esse grande pensador e romancista ‒ ainda pouco estudado no país ‒ com reflexões, debates, apresentações de teatro e cinema. Que o espectador disponha então seu coração e seu espírito para esse banquete de ideias, pois toda censura estará excluída desses três dias de festa. Afinal, como já dizia um libertino contra os adeptos das contingências, “é a diversidade, a mudança que faz a felicidade da vida”.

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